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Direito Arbitral

Judiciário quebra sigilo de processos arbitrais

Por Ana Paula Ragazzi

O Judiciário tem quebrado o sigilo de processos arbitrais. Em duas recentes decisões, desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) retiraram o segredo judicial de ações contra sentenças proferidas por árbitros. O sigilo é considerado um dos principais atrativos da arbitragem.

Um dos casos envolveu divergência nas condições de saída da Escotilha Participações de uma sociedade que mantinha com a Ekanprel em uma empresa chamada GLS Brasil Serviços Marítimos. A Escotilha entrou com pedido de liminar para suspender os efeitos da decisão arbitral, alegando violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Em decisão do dia 2 de março, o desembargador Cesar Ciampolini começa sua análise indeferindo o segredo de justiça para o processo. A justificativa do relator do caso na 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial foi a “ inconstitucionalidade” do artigo 189, IV, do Código de Processo Civil (CPC).

Esse artigo diz que os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos “que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo”.

Ciampolini afirma na decisão que, de acordo com os artigos 5º, LX, e 93, IX, da Constituição, “a regra é a publicidade, que apenas pode ser restringida para salvaguardar a intimidade ou o interesse social”. Para ele, a confidencialidade em arbitragens é nociva ao sistema jurídico, por provocar assimetria de informações e obstar a formação do direito (consolidação dos precedentes e da jurisprudência).

Sobre o caso em si, Ciampolini destaca, em seu voto, que as hipóteses de nulidade da sentença arbitral estão no artigo 32 da Lei nº 9.307, de 1996. Ele entendeu, porém, que, no caso concreto, nenhuma delas estava presente. “Em realidade, o que buscam os autores é a revisão do que foi decidido pelo tribunal arbitral por não concordarem com as conclusões dos árbitros”, diz (processo nº 2263639-76.2020.8.26.0000).

Daniel Kalansky, sócio do Loria e Kalansky Advogados, não considera “correta” a decisão. “Um dos benefícios da arbitragem é a sua confidencialidade. A meu ver a interpretação de que isso é inconstitucional está equivocada. Está assegurado na Lei de Arbitragem que o sigilo pode existir se as partes tiverem acordado”, afirma ele, acrescentando que a própria Lei da Liberdade Econômica “privilegia a autonomia das partes”.

Um segundo caso, também analisado em março pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, aqueceu ainda mais o debate porque, além de derrubarem o sigilo, os desembargadores interferiram no mérito da decisão arbitral. O processo envolve uma operação de aquisição da Alka Tecnologia, da Vyttra Diagnóstico, pela LRM, empresa de serviços de manutenção em equipamentos e máquinas de laboratórios.

O caso foi parar na arbitragem por conta de um suposta violação contratual: a vendedora omitiu da compradora a saída de um cliente relevante. A arbitragem definiu indenização ao comprador de 25% do valor da venda.

Relator do caso, o desembargador Azuma Nishi entendeu que parte da sentença que estabelece a indenização deveria ser anulada, por falta de fundamentação para a determinação do percentual de 25% — a ausência de fundamentação é uma das hipóteses que, por lei, permitem a anulação de decisões arbitrais. Depois da anulação, ele retirou o segredo de Justiça do processo.

Um especialista no tema, que prefere não se identificar, diz que há certo incômodo do Judiciário com o número crescente de arbitragens e processos mal conduzidos, que estão se refletindo num suposto aumento de pedidos de anulação. “Acho que o Judiciário sinaliza que está com um pé atrás com a arbitragem. O primeiro sintoma já vem de alguns anos, pois nas cautelares vinha sendo retirado o sigilo. Agora isso está acontecendo também nas anulatórias. E caiu a confidencialidade não só da decisão, mas da íntegra do processo”, diz o especialista.

Um especialista no tema, que prefere não se identificar, diz que há certo incômodo do Judiciário com o número crescente de arbitragens e processos mal conduzidos, que estão se refletindo num suposto aumento de pedidos de anulação. “Acho que o Judiciário sinaliza que está com um pé atrás com a arbitragem. O primeiro sintoma já vem de alguns anos, pois nas cautelares vinha sendo retirado o sigilo. Agora isso está acontecendo também nas anulatórias. E caiu a confidencialidade não só da decisão, mas da íntegra do processo”, diz o especialista.

Para ele, como as arbitragens cresceram muito, de fato, a qualidade das decisões vem caindo, possivelmente porque os árbitros estão acumulando número maior de processos. Isso se reflete em decisões “ruins” ou com “erros”, avalia. Situações em que o árbitro é questionado por estar sem situação de conflito também têm se repetido.

Exatamente pelo sigilo arbitral, é difícil colocar em números as percepções dos especialistas, mas já há vários exemplos de processos que não correram bem. Na quinta-feira, a Câmara de Arbitragem do Mercado, da B3, dissolveu o tribunal arbitral que havia decidido que a Petrobras deveria ressarcir os fundos de pensão pela desvalorização de suas ações com a Lava-Jato. No fim do ano passado, por conta de irregularidades na produção de provas, a 5ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro havia anulado essa sentença arbitral.

Também na semana passada, a J&F conseguiu liminar suspendendo efeitos de arbitragem contra a Paper Excellence na disputa pelo controle da Eldorado. A argumentação da J&F incluiu desde espionagem até conflito de interesses de um dos árbitros.

Em agosto do ano passado, o desembargador Ciampolini já havia decidido a favor da anulação de uma sentença por suspeição de árbitro — o conflito era entre duas seguradoras, a Alper e a Brasil Insurance. No caso da Vyttra também houve questionamento sobre a imparcialidade dos árbitros, que não foi acatado pela Justiça.

Daniel Kalansky diz estar acompanhando com alguma preocupação o aparentemente crescente número de pedidos de anulação de sentenças arbitrais. Por outro lado, destaca que esse tipo de procedimento é uma salvaguarda para casos em que se discute algum vício na sentença. “É preciso só o cuidado para que decisões que retirem sigilo ou interfiram no mérito não prejudiquem o funcionamento do sistema arbitral, que é muito eficiente e considerado vantajoso pelas partes.”

Rômulo Mariani, sócio do Baraldi & Mariani Advogados, considera positivo que se possa acompanhar as discussões, por facilitar o acesso à jurisprudência, embora reconheça que para os clientes pode ser ruim. “Um dos atrativos da arbitragem é o sigilo”, diz. Ele acrescenta que é pequena a quantidade de sentenças anuladas. “Anular uma sentença arbitral não significa ser contra arbitragem. A anulação de maneira técnica e correta é uma forma de fortalecer a arbitragem.”

Para Guilherme Setoguti, sócio do Monteiro de Castro, Setoguti Advogados, parece estar havendo um exagero de ações anulatórias sem mérito. “Mas sentenças arbitrais defeituosas devem, sim, ser anuladas, inclusive para que se preserve o instituto da arbitragem”, afirma.

Com relação ao sigilo, ele destaca que há uma demanda mundial por mais transparência nesses processos. “Sem dúvida, pelo menos das arbitragens que envolvem operações societárias, o sigilo deveria ser bem relativizado.”

Kalansky também faz a ressalva de que, quando a arbitragem envolve companhias abertas e o caso tem impacto para todos os acionistas, a situação é outra. “Num caso assim, não necessariamente se retira o sigilo, mas algum nível de informação precisa ser divulgada, para que todos os acionistas tenham ciência de potenciais impactos da discussão”, diz. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) está com uma audiência pública sobre esse assunto.

Fonte: Valor Econômico, 28/03/2021.
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